segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

O professor universitário e a "cultura da distração"

Do ponto de vista da reflexão sobre efeitos das tecnologias na educação, em particular na educação superior, é muito interessante a posição de Charles M. Ess, estudioso da relação entre a ética e os meios digitais, expressa em entrevista ao site Figure/Ground Communications (disponível na íntegra aqui).

A entrevista está em inglês, mas para colaborar com discussões e reflexões sobre o tema, traduzimos, abaixo, uma das respostas do autor, notando que o ponto principal -- quanto à questão proposta -- está no terceiro fator de mudança, na argumentação de Ess, do papel do professor universitário nos tempos atuais.
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A tese de Joshua Meyrowitz em No Sense of Place é que, quando as mídias mudam, as situações e papéis se modificam. Em sua experiência, como o papel de professor universitário evoluiu desde que você era um estudante de graduação?

Ele mudou dramaticamente, de diversos modos, alguns deles salutares, outros não tanto, no meu entender.

Os professores que admirava (incluindo, por exemplo, o Dr. Judy Suther de Língua Francesa e Literatura) não eram apenas brilhantes e trabalhavam duro; eles estavam claramente “lá” para seus alunos – seja em termos de ajudar-nos com todas as dificuldades de escrita de lições da graduação ou face a situações cotidianas. Estas certamente incluíam as questões sociais e políticas do momento, mas também nossas próprias preocupações e problemas fundamentais como seres humanos, saindo da adolescência para nos tornarmos jovens adultos. Embora nem todos – para usar a linguagem religiosa – sejam vocacionados para tal serviço, isso permanece para mim como um modelo primário de aspiração.

Porém, perseguir tal modelo de ensino tem se tornado enormemente mais desafiador desde as últimas décadas – em minha opinião, por três razões básicas. A primeira delas, é que os tipos específicos de conhecimentos, tecnologias e metodologias que constituem qualquer dada disciplina têm continuado a se desenvolver e evoluir num ritmo vertiginoso, certamente no âmbito das ciências naturais, mas também nas ciências sociais e nas humanidades. Desse modo, somente para sobreviver como acadêmico com alguma competência crível, em algum campo ou disciplina, é necessária uma especialização cada vez maior, e está especialização se dá em forte tensão – se não em simples contradição – com as visões mais amplas, interdisciplinares e humanistas, da educação, que entendo como básicas.

Em outras palavras, existe um impulso centrífugo para se obter um entendimento mais amplo, algo que combina tanto a especialidade disciplinar quanto o diálogo interdisciplinar e o engajamento. Novamente, na minha experiência e visão, esse impulso tem sido a meta da filosofia desde seu início e democratização, durante o Renascimento e a Ilustração – e então se tornou a meta expressa da educação nas artes liberais, pelo menos no contexto dos EUA. Esse senso de nossa vida acadêmica compartilhada claramente conduz aos tipos de foco nos estudantes, que eu descrevi antes e que tenho como central ao propósito da universidade e da educação liberal. Por outro lado, aquilo que foi uma vez chamado de explosão do conhecimento atua como uma força centrípeta, algo difícil de resistir – mas algo que decididamente nos afasta daquelas visões mais amplas rumo a uma maior fragmentação e, francamente, isolamento.

O segundo fator é econômico. Você não precisa ser um filósofo marxista (embora isso ajude) para ver o até que ponto aquelas sensibilidades anteriores a respeito das metas e significado da vida universitária e da educação liberal têm sido simultaneamente erodidas e substituídas por fatores francamente econômicos. A erosão se dá, obviamente, por uma contínua perda de financiamento das humanidades nas últimas quatro décadas via-à-vis o dinheiro cada vez maior colocado ostensivamente à disposição das disciplinas mais “amigáveis aos negócios”. O que é pior, em minha opinião, é que o assim chamado “modelo de negócios” tem se tornado cada vez mais definitivo para os administradores universitários e seus tutores (legisladores e/ou suportes privados) pensarem sobre a educação – a tal ponto que isso parece ter substituído os anteriores entendimentos e modos de pensar e julgar humanistas e liberais. É claro que nós temos que ter orçamentos equilibrados – porém minha grande preocupação é, de início, que o assim chamado modelo de negócios, especialmente com seus fortes modos de pensamento quantitativos, torna mais e mais difícil obter atenção para os julgamentos qualitativos que são centrais para a concepção liberal e humanista. Apenas como um exemplo, na minha perspectiva uma concepção humanista e liberal pode julgar que um programa, digamos, em música deve ser mantido como um componente central da educação (relembre Nietzsche) – mesmo que o programa seja “antieconômico”, i.e., custe mais para manter do que arrecade com um número relativamente pequeno de estudantes. Em segundo lugar – mas de forma mais sutil e ao mesmo tempo mais fundamental – a minha preocupação é que muitas capacidades para fazer tais julgamentos qualitativos, e, assim, compreender a importância (quase) absoluta das metas humanistas e liberais de educação estão ameaçadas de extinção, quando nós ostensivamente praticamos a maneira de pensar do modelo de negócio cada vez mais e o modo humanista-liberal cada vez menos. Para antecipar a discussão de Postman, o problema é um ponto huxleyano – ou seja, do próprio esquecimento das capacidades e normas que tendem a ser vitais para a formação humanística e para sociedades liberais.

Isto é, tais julgamentos, enquanto qualitativos, são aqueles que os filósofos, desde Sócrates e Aristóteles, têm caracterizado como phronesis, um tipo particular de julgamento ético e reflexivo que é elaborado “de baixo para cima”, ou seja, a partir de contextos dados, altamente específicos. Esses julgamentos – e as capacidades para fazê-los – são diferentes em tipo dos mais fáceis julgamentos quantitativos que são feitos do topo para baixo, ou seja, de forma completamente dedutiva simples, na medida em que eles presumem princípios gerais ou normas e os aplicam a determinado contexto. Este último julgamento certamente tem seu papel e lugar – porém, a maioria de nossos dilemas éticos ( incluindo os políticos e sociais) são dilemas precisamente porque nós não sabemos qual conjunto de normas ou princípios devem tomar parte em determinado contexto. Isto é, determinado contexto é problemático eticamente precisamente porque ele põe em jogo uma série de normas e princípios potencialmente relevantes, alguns em conflito com outros – e, assim, mais do que fazer um julgamento de cima para baixo, nós primeiro temos que julgar que normas e princípios específicos devem aplicar-se acima de tudo.

Com certeza, tais julgamentos são requeridos de todos nós – mais especialmente enquanto seres humanos enfrentando escolhas éticas (e políticas e sociais), porém certamente na prática cotidiana de todos, incluindo aquela nas disciplinas orientadas quantitativamente (como Latour e uma série de outros observadores da ciência têm persuasivamente documentado). Mas minha visão e experiência são que nossas capacidades para fazer julgamentos de tipo qualitativo, indicados pelo termo phronesis, são mais explicitamente o foco e o procedimento das humanidades, talvez mais fortemente na filosofia, porém certamente em todo o espectro das artes plásticas, literatura, língua, entre outras.

A ideia, de qualquer modo, que nós estamos perdendo algo essencial em termos dos modelos quantitativos substituírem nossas capacidades qualitativas não é, simplesmente, a retórica de um professor de filosofia antiga. Parece existir um bom consenso que ao menos certa parte de nossa atual crise financeira deve-se às empresas, da indústria hipotecária até os próprios mercados financeiros, terem se tornado incrivelmente dependentes dos modelos quantitativos e, rapidamente, desenvolverem tecnologias de computador cada ver mais refinadas e sofisticadas – porém ao custo e perda de julgamentos humanos que, aparentemente, continuavam necessários, por exemplo, na avaliação de um risco bom versus um ruim. Nessa perspectiva, a crise financeira é um irônico e profundamente poderoso caso de exemplo negativo do que acontece quando nós não apenas permitimos que o quantitativo marginalize o qualitativo, mas, ainda mais importante, se os modelos quantitativos e modalidades de pensamento desse tipo extinguem completamente nossas capacidades de julgamentos e conhecimentos qualitativos.

Um povo sem visão irá perecer, Joel nos adverte. Quer nossas visões qualitativas sejam mais religiosas ou humanistas (ou, como no caso de Thomas Jefferson e Martin Luther King Jr., ambas) – elas estão profundamente em risco nos nossos dias, e não apenas em detrimento da educação humanista liberal.

Um terceiro fator, em minha opinião, são as próprias tecnologias de computação e comunicação que tenho estudado com especial atenção ao longo dos últimos 30 anos ou mais, ou seja, desde o trabalho inicial com o hipertexto na década de 1980. Alguém chamou a internet de arma de distração em massa, e Sherry Turkle agora a descreve como uma “cultura de distração” – muito do que, acredito, infelizmente, confirma as observações e reflexões de Neil Postman em Amusing Ourselves to Death.

Em particular, boa parte do trabalho que tenho visto nos últimos quinze anos ou mais – voltado especialmente ao pensamento feminista, à fenomenologia, e à ética da virtude – destaca, em primeiro lugar, o papel do corpo no nosso conhecimento e navegação no mundo. Contra o entusiasmo dos anos de 1990 pelas várias formas de liberação no ciberespaço e, com isso, a aprendizagem on-line – penso que a evidência agora deixa bastante claro que a co-presença corporificada é crucial para, pelo menos, certas formas de aprendizagem, incluindo as que incidam sobre a aquisição e prática de phronesis. A referência à prática aqui é uma referência à ética da virtude: phronesis, juntamente com outras habilidades críticas ou hábitos de excelência necessários, tanto para a satisfação individual, quanto para a harmonia comunitária – incluindo as virtudes da paciência, perseverança e empatia, como Shannon Vallor tão claramente argumentou –, são adquiridos apenas durante um longo período de tempo. Além disso, eles são muito difíceis no início, como qualquer outra habilidade ou excelência que vale a pena alcançar. Porém nos espaços on-line nós gastamos nosso tempo de um modo não apenas amplamente desincorporado – assim ignorando o que saberíamos e aprenderíamos um do outro em modos não-verbais tácitos, disponíveis para nós na co-presença corporal; além disso, eles são marcados pela preferência pelo curto, rápido e efêmero – o que Naomir Baron chama de “texto rápido”. Quanto mais nadamos no mar de informação dos fluxos do Twitter, das atualizações do Facebook, mensagens de SMS, e-mail breves, etc., que tomam cada vez mais o nosso tempo e dispersam nossa atenção, menos praticamos as habilidades de atenção e reflexão cultivadas que, como Shannon Vallor novamente torna muito claro, são necessárias para amizades profundas, compromissos de longo prazo – e, parafraseando Naomi Baron, leitura cuidadosa.

Há três perdas particulares aqui: primeiro, a perda de competências e habilidades associadas com a alfabetização [literacy] e edição [print], e, segundo a perda de um sentido de si que enfatize o racional e o individual – um senso de si que é imediatamente definidor da educação e da democracia liberais construídas sobre os direitos fundamentais de igualdade. O que isso significa, infelizmente, é que as modernas concepções de democracia, de estado liberal e compromissos com a igualdade também podem submergir – como os novos meios de comunicação (de qualquer maneira podemos defini-los assim) cada vez mais favorecem arranjos comunicativos que promovem, ao invés dos valores mencionados, o emotivo e o relacional, um lugar para o eu emotivo-relacional – que surge inicialmente com a oralidade –, constantemente estes se correlacionam com estruturas sociais hierárquicas e regimes autoritários. Em termos gerais, e como ninguém menos que um pós-modernista como Foucault apontou, finalmente em suas últimas palestras, as competências e habilidades associadas com o que na Teoria da Mídia se classifica como alfabetização [literacy] e depois edição [print] são fundamentais para o que Foucault identifica com a ética do cuidado de si, tão antiga quanto Sócrates e os estóicos. Como muitos estudiosos têm notado, a literácia é especificamente ligada ao surgimento da racionalidade, incluindo as análises de lógica que contribuem para o pensamento crítico. Mais amplamente, a leitura atenta e a reflexão, incluindo a autorreflexão, que as tornam possíveis, estão estreitamente relacionadas com o desenvolvimento de concepções de si que enfatizam a racionalidade e a individualidade – em contraste com as ênfases anteriores nas ubiquidade afetiva e relacional. Isso significa, novamente, que acredito que Postman está (infelizmente) absolutamente certo: a perda de habilidades e comodidades associadas com a leitura atenta de longos textos e reflexões críticas significa a perda do tipo de inteligência reflexiva e capacidade para o diálogo crítico e o debate que são centrais para a cidadania democrática e a governança. Sherry Turkle toca no mesmo ponto em seu recente livro, Alone Togheter. Ao menos, estou em boa companhia.

Tudo isso, em conclusão, enfraquece de maneira direta o papel do professor universitário como o esbocei acima – isto é, como devotado ao ensino humanista e à aprendizagem liberal orientada a ajudar os estudantes (e a nós mesmos) a adquirirem as habilidades e capacidades agrupadas em torno da liberdade e autonomia humanas em sociedades democrático-liberais.

Um comentário:

  1. Great translation! I invite you to check out our complete series of scholarly interviews here: www.figureground.ca/interviews/

    Kind regards,

    L.

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