quinta-feira, 13 de junho de 2013

Ideias - tradução
O futuro da educação superior será online?* (3/3)


Nathan Heller

“Posso facilmente imaginar uma grande instituição, como Harvard, com um grande e dinâmico arquivo, onde, mesmo depois que eu me for – não apenas me aposentar, mas vamos dizer realmente ir-me, quero dizer, morrer – aspectos do curso poderiam entrelaçar-se com gerações posteriores de professores e pesquisadores”, contou-me Nagy. “O próprio Aquiles diz, na Rapsódia 9, Linha 413: ‘Eu morrerei, mas essa história será como uma bela flor que nunca murcha’.”

Em Cambridge, quando o clima começa a esquentar, as fragrâncias retornam: primeiro, há um suave, leve aroma de terra e de nevoeiro; a grama regressa; e as árvores começam a florescer no pátio da biblioteca de livros antigos de Harvard. Jardineiros recolhem as folhas. Num dos primeiros dias quentes do ano, conheci Peter J. Burgard, um professor de alemão na Universidade de Harvard, na entrada traseira da Biblioteca Widener, onde ele mantém um local de estudo separado de seu escritório.

Burgard é um homem alto com, com uma coroa de cabelos grisalhos ondulados. Naquela tarde, ele usava uma camisa listrada verde e azul brilhante, jeans e meias verdes limão. Apesar de todas as suas alegações sobre a pressão acadêmica, ele lê uma quantidade razoável online, e fala como um inquieto jovem comediante de standup, com uma cadência firme. Diferentemente da maioria dos professores contratados, Burgard ministra cursos avançados de língua alemã por opção, e, a cada verão, dirige um programa intensivo de imersão, em Munique. Seu outro campo de ensino é variado: os seus temas incluem o Iluminismo alemão, literatura e arte barroca, arte do século XX, Goethe, Nietzsche e Freud.

“Para mim, o ensino superior é sentar em uma sala de aula com os alunos e explorar um tema complicado. Há uma química nisso que simplesmente não pode ser replicada online”
Burgard é um professor altamente prestigiado. Desde que a edX foi anunciada em Harvard, entretanto, ele tem sido um crítico persistente e sincero dela. “Tomei a decisão de não ensinar na HarvardX”, ele contou-me, girando sua cadeira em frente a um grande iMac. Atrás dele, apoiado em uma parede, há uma enorme reprodução em preto e branco da “Jurisprudência” de Gustav Klimt, sobra de uma exposição, de 2005, com a cocuradoria de Burgard; que mostra um homem sendo enlaçado por um polvo na frente de três mulheres nuas. “Para mim, o ensino superior, em geral, é sentar em uma sala de aula com os alunos, e de preferência com poucos alunos, o suficiente para que você possa ter uma interação real, e realmente cavar e explorar um tema complicado – uma imagem difícil, um texto fascinante, o que for. Isso é que é emocionante. Há uma química nisso que simplesmente não pode ser replicada online.” Burgard também teme que os MOOCs possam lentamente sufocar o ensino superior como sistema.

“Imagine que você está na estadual de Dakota do Sul”, disse ele, “e eles estão sem dinheiro, e eles dizem, ‘Oh! Existem esses cursos da HarvardX. Vamos contratar um adjunto por três mil dólares por semestre, e nós vamos ter os alunos assistindo a este programa de TV.’ Sua faculdade vai diminuir muito rapidamente. Eventualmente, essa diminuição vai se dar em prol das universidades e faculdades maiores e menos pobres. Quanto menos cargos existem, menos doutores vão ser contratados. Quanto menos doutores contratados – bem, você pode ver para onde isso vai. Provavelmente isso vai prejudicar menos as faculdades com pós-graduação prestigiadas em primeiro lugar, mas eventualmente ele vai fazer isso com as escolas de pós-graduação de primeira linha... Se você tem um programa de pós-graduação menor, você pode ter certeza que os decanos vão dizer: ‘Em primeiro lugar, metade dos nossos estudantes estão fazendo MOOCs. Em segundo lugar, você não tem tantos estudantes de pós-graduação. Você não precisa de tantos professores em seu departamento de Inglês, ou o departamento de História, ou o seu departamento de Antropologia, ou qualquer outro.’ E cada vez que o corpo docente encolhe, é claro, há menos campos e subcampos ensinados. E, quando menos campos e subcampos são ensinados, corpos de conhecimento são negligenciados e morrem. Você pode ver como tudo decai a partir disso.”

Perguntei ao reitor de Harvard, Michael Smith, se ele se preocupava com os efeitos dos MOOCs no mercado de trabalho acadêmico. “Creio que frequentemente essa questão é supersimplificada”, ele disse. “Nós estamos trabalhando muito próximos a nossas faculdades de pós-graduação e estudantes de pós-graduação para pensar como eles podem se envolver nesse processo.” Os trabalhados oferecidos hoje, ele disse, serão necessariamente “diferentes daqueles que eu via quando conclui minha pós-graduação”. Alguns estudantes de doutorado estão sendo treinados na produção de MOOCs como “HarvardX fellows”.

Porém, Burgard não está sozinho em suas preocupações. No último mês quando a Faculdade Amherst recusou um convite para integrar a edX, seguiu o voto de mais de sessenta por cento do corpo docente. Um grande número dos professores, alguns dos quais tinham navegado nos MOOCs de Harvard, temiam que eles ameaçassem centralizar o ensino superior num nível insuportável, e que sua escala gigante se chocaria com o estilo de pequenas turmas de Amherst. Um único MOOC poderia ter um número maior de alunos, mortos e vivos, que Amherst tinha visto nos últimos dois séculos.

Um único MOOC poderia ter um número maior de alunos, mortos e vivos, que Amherst tinha visto nos últimos dois séculos
“Fiquei surpreso com o resultado”, disse-me David W. Wills, professor de história religiosa, em Amherst. “Pareceu como sair da estrada quando algo que estava para acontecer.” Wills era no início aberto aos MOOCs, ele disse. Mas quanto mais ele ouviu, mais sua preocupações cresciam, e nenhum dos representantes do edX parecia capaz de responde-las. “Uma das pessoas do edX disse: “Isso está sendo patrocinado pela Harvard e pelo MIT. Eles não fariam nada para prejudicar a educação superior!” O que me veio à mente foi alguns analistas financeiros cautelosos falando sobre alguns dos instrumentos financeiros que estavam sendo implantadas no final dos anos noventa e início do segundo milênio, ‘Isso é coisa arriscada , não é?’ E respondiam: ‘A Goldman Sachs está fazendo isso; a Lehman Brothers está fazendo isso.’” A linguagem que ele ouviu da edX, disse ele, era a retórica da inovação tecnológica – aparentemente excluindo tudo o mais – e ele se preocupava com academia caindo sob a servidão hierárquica de alguns poucos professores estrela. “É como se o ensino superior tivesse descoberto a megaigreja”, ele me falou.

Eles e outros se preocupam com o efeito disso nos pequenos pregadores. “Tenho que dizer, virou meu estômago pensar que nós estávamos tomando decisões sobre o trabalho de outras pessoas, numa discussão da qual elas não tomavam parte”, contou-me Adam Sitze, um membro do departamento de Direito, Jurisprudência e Pensamento Social em Amherst. “Existem pessoas muito brilhantes nessas instituições que não são ricas.” Numa reunião, um dos colegas de Sitze descreveu a conveniência dos MOOCs para as universidades mais fracas como “comer a nossa semente de milho”.

Eu estava curioso para saber se os estudantes de pós-graduação em Harvard, os professores de elite do futuro, partilhavam algumas dessas preocupações. A maioria com quem falei pareceu bastante confiante no futuro de uma academia sustentada pelos MOOCs, ou, pelo menos, otimista em seu desencanto. “Tenho dificuldade em ver como isso torna a situação, já terrível para as humanidades, pior”, disse Stephen Squibb, um estudante de pós-graduação em Inglês.

Isso pode tornar algumas coisas melhores? Peter K. Bol, um historiador intelectual da cultura chinesa, começou a utilizar computadores quando era estudante de Princeton, no final dos anos setenta, porque era um mau datilógrafo. Hoje, como diretor do Centro para Análise Geográfica de Harvard, ele é um expoente no uso de tecnologias de sistemas de informação geográfica no estudo histórico – como o Google Mapas, exceto pelo valor de registro histórico das informações nele contidas.

Para ele, os MOOCs parecem uma vitória do open-acess acadêmico. “A questão para nós aqui era: Como fazer com que o que você está ensinando num pequeno grupo torne-se acessível para um vasto grupo?” Bol disse-me na manhã seguinte em seu escritório, uma espécie de selva de papel empilhado, com revistas acadêmicas, manuscritos e livros. “Ao menos que eu escreva livros populares, não estarei atingindo aquelas pessoas. Não estarei contando sobre coisas que tenho me esforçado em tentar entender.”

Agora ele acredita que pode. Neste outono, Bol irá lançar ChinaX, uma investigação da história cultural chinesa do período neolítico aos dias de hoje. Ele tem lançado ainda um curso para fazer com que os estudantes envolvam-se na preparação deste programa. Aqueles que estão em “História Chinesa 185: Criando ChinaX” – uma aula no campus oferecida apenas para os alunos de Harvard – têm usado o tempo para construir o curso online de Bol, módulo por módulo, em pequenos grupos sob sua direção. A aula ocorre tanto em sala quanto no laboratório de computadores. Acompanhei uma das reuniões em classe.

Bol é um professor talentoso. Quando ele conduz a aula, seus modos um pouco duros e cansados transformam-se, como se dissipam os anos de um ator veterano quando a cortina sobe. Ela fala enérgica e claramente, gesticula animadamente com as duas mãos, como se manipulasse duas marionetes dançantes. Suas piadas fazem toda a classe gargalhar. Era a primeira vez que eu estava numa aula universitária desde meus tempos de faculdade, e senti novamente os velhos hábitos de um ritmo longo esquecido. Percebi-me tomando notas, típicas notações universitárias, notas mais nervosamente obedientes e conceituais das que costumo fazer atualmente. Uma vez, quando Bol falava, olhei de relance para meu telefone para ver se um importante e-mail tinha chegado. Quando levantei o olhar, vi os olhos de Bol sobre mim, e estremeci. Novamente eu adotara a dupla consciência do aluno: o estranho sentimento de olhar alguém que nos olha de volta, o desejo de fornecer apoio. Algo mágico e frágil estava acontecendo ali, na sala. Não queria ser o cara que quebrasse o encanto.

Próximo do fim da sessão de horas, uma estudante levantou sua mão e perguntou a Bol o que ele queria dizer com a frase que ele usara “a mentalidade do historiador”. A classe se agitou por alguns minutos. Bol concordou e sentou na borda de uma mesa, com as pernas balançando. Um colega e colaborador tinha entrado na sala, o historiador Mark C. Elliot, e Bol pediu a ele para vir à frente. Os dois sentaram lado a lado. Bol disse: “Como eu reconheço a mentalidade do historiador quando eu a vejo? Eu conheço porque é alguém interessado em como as coisas mudam ao longo do tempo, mas não apenas isso. Eles estão também interessados no problema de como as coisas mudam ao longo do tempo. E em como avaliar a mudança ao longo do tempo”.

“Eu responderia de modo levemente diferente”, disse Elliott. “Diria que a mentalidade do historiador é a da pessoa que vê o que está acontecendo hoje, e reconhece que tudo que ocorre não acontece pela primeira vez. E em que tudo que estamos vendo possui certa semelhança, em algum ponto, com algum momento no tempo passado. E que estas versões de tipos de mudança que nos vemos ao nosso redor em várias escalas são apenas a mais recente fase de uma série de mudanças similares.”

Bol inclinou a cabeça. “Assim, parece-me que você está dizendo...”

“Lá vem ele!”

“...Que a história é uma espécie de repetição em certos aspectos. Mas não é a história também cumulativa – por isso, quando vemos acontecer uma segunda vez, é um pouco diferente da primeira vez?”

“Sim, eu certamente não quer dizer que ele está repetindo. Há uma grande música Shirley Bassey, na verdade, ‘História Repeating’...”

“Se você pudesse cantar uma estrofe ou duas...”

“Eu vou lhe enviar o MP3. Ela não repete, mas rima”.

A educação é um processo curiosamente alquímico. Suas vicissitudes são difíceis de isolar
Essa discussão deixou um silêncio cheio de energia na classe, o sentimento de tinta fresca sobre uma tela. Sentado ali, pensei em momentos inesperados e frágeis que juntos definiram minha educação superior. Uma vez, durante um período quente no inverno, um professor de harmonia barroca de coral, andava na sala e gastou metade da aula analisando uma música colada na sua mente; a canção era “Junho em Janeiro”, e hoje isso me lembra abrir janelas e uma sexta-feira quente. Ainda posso ver o escritório da faculdade – pequeno, mal iluminado, frio – onde eu estava quando calouro, discutindo, quando o professor, com um cachecol cinza escuro no pescoço, mencionou um tesouro documental que iria tornar a base de minha senior tesis [NT: trabalho de pesquisa original feito por estudantes dos EUA, tanto no fim do colegial, quanto na graduação – costuma ser utilizado como meio para ingresso na própria graduação ou na pós-graduação]. Lembro-me de estar na apresentação de um curso de pesquisa tão entediante e equivocado que, em certo momento, a mulher que se sentava ao meu lado me estendeu a mão e escreveu o comentário “uh-tire-me-daqui” na margem de meu bloco de notas. E ela usou uma caneta de tinta azul. E aqueles momentos quando ela escrevia cada anotação foram felizes. Lembro desses momentos e lembro de outros. Eu vi coisas que seu povo não iria acreditar.

A educação é um processo curiosamente alquímico. Suas vicissitudes são difíceis de isolar. Por que alguns estudantes retêm aquilo que aprenderam num curso por anos, enquanto outros irão esquecer logo após o fim de suas férias de verão? O fato de que Bill Gates e Mark Zuckerberg deixaram Harvard para revolucionar a indústria de tecnologia é um sinal que sua educação em Harvard funcionou ou que ela falhou? A resposta importa, porque o processo pelo qual transmitimos conhecimento transformando-o em educação é a medida pela qual os MOOCs irão enriquecer o ensino neste país ou o empobrecer.

William W. Fisher III, um professor da Faculdade de Direito de Harvard, tem feito experiência com modos para discriminar a diferença. Nessa primavera ele está ensinando seu primeiro curso online, CopyrightX, dentro do edX. Porem ele é também um estudioso casual do meio. O campo de estudo de Fisher é a lei de propriedade intelectual – ele está entre os que representam Shepard Fairey e seu pôster “Hope” [NT: famoso cartaz da primeira campanha presidencial de Barack Obama, que resultou numa controvérsia legal com o autor da foto que deu origem ao pôster] – e ele trabalha um bocado em direitos na era digital. Encontrei-o numa manhã em seu escritório, que tinha uma mesa fixa e um teclado ergonômico no canto. Em certo momento, Nica, a cadela d’água portuguesa de Fisher, passeou nele. Ele me explicou que tem reservas sobre os MOOCs.

“As duas características que nós podemos encontrar na maior parte dessa recente onde de cursos online são: primeiro, o que podemos descrever de maneira variada como “o guru no topo da montanha”, o “modelo broadcast” ou o “modelo um-para-muitos”, ou ainda o “modelo TV”, ele diz. Fisher tem uma mecha de cabelo loiro-avermelhado. Ele estava vestindo um terno listrado e, de modo incongruente, botas para caminhada marrons. “A ideia básica aqui é que um especialista no campo de estudos fala para as massas, que absorvem a sabedoria dele ou dela. A segunda característica é que, tendo em vista que a aprendizagem envolve algum grau de interatividade, esta interatividade é configurada em formatos que utilizam questões automáticas ou de certo-e-errado.

“Creio que isso falha em aproveitar a maioria das mais importantes vantagens das novas tecnologias relacionadas com a educação”, disse Fisher. “É possível que isso seja ideal para a matemática, a ciência da computação e as ciências naturais duras. Eu não ensino esses assuntos, por isso não tenho certeza. Mas tenho claro que não é ideal para as ciências sociais, as ciências humanas e o direito. Então, gostaria de tentar uma técnica diferente.”

Diferentemente da maioria dos MOOCs, CopyrightX ocorre simultaneamente com a versão presencial do curso. Isto permite conectar as duas comunidades
A ideia de Fisher é, tanto quanto possível, restringir seu curso. A inscrição online em CopyrightX foi limitada a 500 estudantes. Ao escolhê-los, ele analisou em parte os tipos de profissões e as idades: sua meta é transmitir o conhecimento da lei de direitos autorais na era digital entre pessoas que irão poder aplicá-la criativamente em seus próprios círculos e no trabalho. Diferentemente da maioria dos MOOCs, CopyrightX ocorre simultaneamente com a versão do curso que Fisher ministra na Faculdade de Direito. Isto permite que ele conecte as duas comunidades. Os alunos de seu curso escolar universitário, e de fora dele, voluntariam-se para atuar como “assistentes de ensino” para os estudantes online. Ele dividiu as cinco centenas de alunos entre esses voluntários.

A cada semana, a classe da Faculdade de Direito tem duas sessões socráticas no campus. Os estudantes online, por sua vez, têm “sessões” na web, ministradas pelos assistentes de ensino. Na outra semana, o grupo todo se reúne, presencial ou remotamente, para uma sessão na Faculdade de Direito, de tarde. Os artistas, escritores, detentores de direitos autorais, encontram-se e falam sobre suas preocupações legais. Os assistentes de ensino estão na sala, porém também online com seus alunos, que estão assistindo ao evento por uma transmissão via web. “O tutor está monitorando a discussão, participando dela, e então encaminha questões para a sala”, disse Fisher. “Assim a classe tem dois quadros: um com as questões dos estudantes da Faculdade de Direito de Harvard e outro destacando as questões que foram selecionadas pelos tutores. E nós intercalamos as discussões entre elas.”

Conforme as engrenagens de CopyrightX se movem, o curso tenta cumprir todas as promessas da educação online: dissemina conhecimento útil além de Harvard, permite que os alunos aprendam por meio do ensino e enriquece o ambiente de sala de aula dando mais tempo para a discussão de problemas difíceis. Também não é massivo, aberto ou totalmente online. “É uma velha ideia – basicamente o modelo de seminário que tem funcionado por séculos”, diz Fisher. “Mas continua sendo uma boa ideia.”♦



*Original: Has the future of college moved online? by Nathan Heller - THE NEW YORKER (May 20, 2013)
Imagem: OpenSource Way (Libby Levi).
Tradução: Richard Romancini e Patrícia Horta Alves
Trabalho sem fins comerciais
Nonprofit work

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