terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Bons inícios de trabalhos científicos

O Amigo de Montaigne fez há algum tempo uma observação sobre a importância de bons inícios nos livros: “Não é nenhum segredo que um bom prefácio, uma boa epígrafe, uns bons primeiros parágrafos podem ganhar o leitor mais facilmente”. Ele se refere à literatura, no entanto nas ciências, em particular nas sociais e nas humanidades, bons inícios também favorecem a disposição do leitor.

Isso é reconhecido por alguns pesquisadores que produzem trechos iniciais bem caprichados em diferentes estilos. Vamos exemplicar alguns.

O estilo, bastante literário, ao mesmo tempo alusivo e descritivo, adotado por José Guilherme Cantor Magnani, em Festa no Pedaço (SP, Hucitec, 1998, p. 23):

A periferia da Grande São Paulo constitui um mundo de difícil acesso para quem vem do lado de lá da Avenida Marginal: sua topografia é acidentada, o traçado das ruas e becos nem sempre respeita as decantadas regras do planejamento urbano, as construções denunciam a ausência da prancheta do arquiteto e a decoração fere ostensivamente as normas de certa concepção estética."

O estilo leitmotif, anuncia o tema recorrente do trabalho, de Paul Willis, em Aprendendo a ser trabalhador (Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, p. 11):

A coisa difícil de ser explicada a respeito da forma como jovens de classe média obtêm empregos de classe média é por que os outros deixam que isso aconteça. A coisa difícil de ser explicada a respeito da forma como jovens de classe operária acabam em empregos de classe operária é por que eles próprios deixam que isso aconteça com eles."

Outro estilo leitmotif, mais direito ainda e interrogativo, de Marsahll Sahlins, em Cultura e razão prática (RJ, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 11):

A  questão que primeiro inspirou este livro foi se a concepção materialista da história e da cultura, tal como formulada teoricamente por Marx, poderia ser transferida sem problemas para a compreensão das sociedades tribais. Uma vez que parecia que não, a questão tornou-se: qual a natureza real da dificuldade?"

O estilo antecipatório, que enuncia a tese (que o trabalho procurará demonstrar) e o objetivo principal do estudo, de Thomas Khun, em A estrutura das revoluções científicas (SP, Perspectiva, 3a. ed, 1991, p. 19):

Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina. Mesmo os próprios cientistas têm haurido essa imagem principalmente no estudo das realizações científicas acabadas, tal como registradas nos clássicos e, mais recentemente, nos manuais, que cada nova geração utiliza para aprender seu ofício. Contudo, o objetivo de tais livros é inevitavelmente persuasivo e pedagógico: um conceito de ciências deles haurido terá tantas probabilidades de assemelhar-se ao empreendimento que os produziu como a imagem de uma cultura nacional obtida através de um folheto turístico ou um manual de línguas. Este livro tenta mostrar que esses livros nos têm enganado em aspectos fundamentais. Seu objetivo é esboçar um conceito de ciência bastante diverso dos registros históricos da própria atividade de pesquisa."

O estilo narrativo (que produz certo suspense e curiosidade) de Bruno Latour, em Ciência em ação (SP, Ed. Unesp, 2001, p. 11):

Cena 1: Numa manhã fria e ensolarada de outubro de 1985, John Whittaker entra em seu gabinete do prédido de biologia molecular do Instituto Pasteur em Paris e liga seu computador Eclipse MV/8000. Alguns segundos depois de carregar os programas especiais por ele concebidos, brilha na tela uma imagem tridimencional da dupla hélice de DNA. John é cientista da computação, convidado pelo Instituto para trabalhar na criação de programas capazes de produzir imagens tridimensionais das hélices de DNA e relacioná-las com as milhares de novas sequências de ácidos nucléicos despejadas todos os anos em revistas e bancos de dados. 'Bela figura, hein?', diz seu chefe, Pierre, que acaba de entrar no gabinete. 'É... boa máquina também', responde John."

O estilo bastante direto e metodológico (na sua "secura" lembra Graciliano Ramos) de Antonio Candido, em Os parceiros do Rio Bonito (SP, Duas Cidades/Ed. 34, 9a. ed. 2001, p. 21):

Este estudo se baseia, de modo especial, em investigações realizadas no município de Bofete, nos anos de 1948 e 1954. Visa, em linhas gerais, a conhecer os meios de vida num agrupamento de caipiras: quais são, como se obtêm, de que maneira se ligam à vida social, como refletem as formas de organização e as de ajuste ao meio. Pareceu conveniente, para compreender os demais aspectos da cultura caipira, adotar um ponto de partida situado no nível modesto mas decisivo da realidade econômica."

Por fim, para encerrar com um clássico, considerado uma obra prima tanto da etnografia quanto da literatura, a bela e paradoxal introdução de Tristes Trópicos (SP, Anhembi, 1957, p. 9), de Claude Lévi-Strauss:

Odeio as viagens e os exploradores. E eis que me preparo para cantar as minhas expedições. Mas quanta tempo levei para decidir-me! Quinze anos se passaram desde que pela última vez deixei o Brasil e, durante todo esse tempo, frequentemente projetei a redação deste livro; de cada vez, uma espécie de vergonha e de asco me impediram. E então? seria indispensável narrar miúdamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes? A aventura não tem lugar na profissão de etnógrafo; ela é apenas a sua servidão, pesa sobre o trabalho eficaz com o peso das semanas ou dos meses perdidos em caminho; das horas inúteis enquanto o informante se oculta; da fome, da fadiga, por vezes da doença; e sempre, desses mil trabalhos penosos que roem os dias em pura perda e reduzem a vida perigosa no coração da floresta virgem a uma imitação do serviço militar... Que tantos esforços e vãos sacrifícios sejam necessarios para atingir o objeto dos nossos estudos, isso em nada valoriza o que se deveria considerar antes como a aspecto negativo do nosso oficio. Só despojadas dessa ganga e que adquirem valor as verdades que vamos buscar tão longe. Podem-se, certamente, gastar seis meses de viagem, de privações e de enjoativa lassitude na colheita (que tornará alguns dias, por vezes algumas horas) de um mito inedito, duma desconhecida regra de casamento, duma lista incompleta de nomes de um clã, mas esta escória da lembrança: 'Às 5 h. da manhã entramos na baía de Recife, enquanto pipilam as gaivotas e uma flotilha de vendedores de frutos exóticos se espremem ao longo do casco' - uma recordação tão pobre merecerá que eu tome da pena para fixá-la?"

Quem sabe, esses exemplos -- é verdade, alguns, excepcionais -- possam inspirar os cursistas do Mídias na Educação, na redação de suas monografias!

PS: se você conhece outros inícios interessantes de textos científicos, indique nos comentários.

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